Autora de Tornar-se Palestina vê gravidade sem precedentes em Gaza

Descendente de palestinos, a escritora chilena Lina Meruane lançou, no mês passado, a edição ampliada de Tornar-se Palestina, com apresentação de Milton Hatoum e o acréscimo de uma terceira parte, chamada Rostos em meu rosto. Um dos destaques da Feira do Livro de São Paulo, que encerrou no domingo (22) sua quarta edição, a autora vê uma situação de gravidade sem precedentes na Faixa de Gaza e avalia que eventos literários são um convite ao debate aprofundado. 
Publicada pela Relicário Edições, a obra vendeu mais de 15 mil cópias no Brasil em sua primeira edição e narra a busca da escritora por suas raízes palestinas, bem como a relação com o exílio e a herança familiar.
Em entrevista à Agência Brasil, a autora ressalta a relevância do diálogo entre autores e o público, durante eventos literários, sobre temas como a situação de Gaza. Trabalhando em uma nova obra sobre o genocício na Palestina, prevista para o final deste ano, ela avalia que, embora o cenário no enclave pareça impossível de se transformar, é importante permanecer atento e continuar falando sobre a questão.
“Essa é uma função muito importante das feiras e festivais de livros: abrir um campo de ideias, despertar interesse no público, adicionar nuances às informações que aparecem na imprensa ─ que são frequentemente manipuladas ─ e convidá-los a ler livros em que os escritores possam se aprofundar nos detalhes de cada uma dessas questões complexas”, disse.
A Faixa de Gaza é um território palestino que tem sido alvo de intensos bombardeios e ataques por terra do Exército de Israel desde um atentado do grupo islâmico Hamas a vilas ao sul de Israel, em outubro de 2023, que deixou cerca de 1,2 mil mortos e fez 220 reféns. O Hamas, que governa Gaza, sustenta que o ataque foi uma resposta ao cerco de mais de 17 anos imposto ao enclave e também à ocupação dos territórios palestinos por Israel.
Os ataques israelenses contra a Faixa de Gaza, desde então, já fizeram mais de 55 mil vítimas e deixaram mais de 100 mil feridos, além de destruírem hospitais, escolas e todo tipo de infraestrutura que presta serviços à população. Um bloqueio às fronteiras do território também impede a entrada de alimentos e medicamentos, agravando a crise humanitária, que é denunciada como genocídio por países como o Brasil. Segundo Israel, o objetivo é resgatar os reféns que ainda estão com o Hamas e eliminar o grupo completamente.
 
A autora vê a atual ofensiva na Faixa de Gaza como uma intensificação de um longo processo de ocupação colonial na Palestina. Ela afirma que “os fundadores de Israel já diziam estar tomando uma terra sem povo para um povo sem terra”. 
“E é isso que dizem hoje, que os palestinos não são povo, não têm o direito de ser povo. Isso é chocantemente brutal e literal. Israel vem construindo motivos para desapropriar, alienar, humilhar, assassinar e, por fim, acabar com os palestinos, exterminá-los.”
Lina Meruane também critica o discurso israelense de direito à autodefesa como uma justificativa para o atual conflito em Gaza. “Israel já existe e não está realmente se defendendo. Em vez disso, está gerando ataques contínuos, aos quais os palestinos, às vezes, respondem. A situação atual é de uma gravidade sem precedentes e de uma impunidade inaceitável”, lamentou.
A obra Tornar-se Palestina começou a ser escrita em 2012, no momento em que Lina embarcava em um avião com destino à terra natal de seus antepassados. “Ao chegar a Israel, percebi como a situação era vivenciada em campo. Isso gerou um movimento de escrever sobre o passado em termos de memória e de tentar entender e resgatar, sobretudo, a história da migração da minha família e da grande comunidade palestina no Chile”, contou.
“Ao mesmo tempo, me fez olhar com muita atenção para o presente e tentar entender o que os palestinos estavam vivenciando, tanto dentro de Israel quanto nos territórios ocupados”, acrescentou.
Já a terceira parte, acrescentada na recente edição, discute a questão da identidade vista nos rostos e os paradoxos culturais que os corpos carregam, a partir de uma nova viagem que a escritora fez à Palestina. A autora afirmou que esse é o fechamento de livro que foi crescendo ao longo dos anos, mas não vai mais se expandir.
“O livro conta como foi organizando um sistema brutal de colonização e extermínio da população palestina, e a organização de uma aceleração do genocídio que está ocorrendo hoje. É um relato de família, um relato de viagem, um ensaio político e uma reflexão sobre como o colonialismo e o genocídio israelense operam hoje”, explicou.
Lina Meruane passou por uma experiência que se mostrou muito comum durante suas viagens. As pessoas perguntavam se ela era israelense, porque não identificavam seu sotaque, rosto e jeito de se vestir como palestinos. “Comecei a refletir sobre a identidade, sobre o reaparecimento de um interesse em ler, nos rostos, quem e como os outros são. Aquilo que tínhamos visto durante a era nazista e que pensávamos ter desaparecido reapareceu com uma força tremenda”, observou.
Segundo ela, esse fenômeno começou a se expressar de forma preocupante nas tecnologias de reconhecimento facial. “No livro, falo da aceleração da vigilância facial para identificar rostos e controlar indivíduos que se movem pelo território. Isso, que parece um pouco ficção científica, é uma realidade muito brutal agora”, disse. “A Europa está cheia de câmeras, as passagens de fronteira estão cheias de câmeras, os postos de controle, e a Palestina é um lugar completamente monitorado”, relatou.
Para o curador da 4ª edição da Feira do Livro de São Paulo, Paulo Werneck, “Os festivais literários são caixas de ressonância para as grandes questões do mundo no seu tempo”. Ele avalia que, neste ano, o evento deu destaque à tragédia humanitária na Faixa de Gaza e aos 40 anos da redemocratização no Brasil após a ditadura militar.
“Os escritores são observadores privilegiados da História. Por meio deles, a gente sabe do que acontece nas guerras, por exemplo. Sobre a Segunda Guerra Mundial, muitos relatos vieram de escritores ou de jornalistas”, disse Werneck, que elogiou Lina Meruane e Tornar-se Palestina: “já é um clássico.”
O curador citou ainda a correspondente Alexandra Lucas Coelho, que falou, na feira, sobre seu novo livro “Gaza está em toda parte”, uma denúncia do genocídio palestino por Israel; e o escritor sírio-palestino, nascido em um campo de refugiados em Damasco, Ghayath Almadhoun, que traz a crítica política como a tônica de sua poesia. Neste ano, o poeta, que também participou do evento, lançou a primeira edição de “Você deu em pagamento o meu país” no Brasil.
 
 

source