BSB Distrito

Temporada França-Brasil provoca com obras sobre IA, clima e trabalho

Carro, moto, pessoa, helicóptero, casa. Associar imagens e mapas que aparecem diante da tela do computador a palavras é o trabalho de pessoas, principalmente de países do Sul global, que ficam horas confinados em ambientes de poucos metros quadrados, em troca de baixas remunerações. As identificações servem para treinar inteligências artificiais (IA) de grandes empresas de tecnologia. Os chamados microtrabalhos surgem como alternativa de renda, ao mesmo tempo que colocam trabalhadores em situações extenuantes física e psicologicamente.
A instalação artística de Lauritz Bohne (Alemanha), Lea Scherer (Austria) e Edward Zammit (Malta) denuncia essa precarização, que afeta milhões de pessoas no mundo. Em Meta Office: Atrás das telas da Amazon Mechanical Turks (2021-2025), eles reúnem dados, por cidade, da remuneração média dos microtrabalhos, do tamanho do espaço em que as pessoas realizam essas atividades, entre outros. Além disso, exibem fotografias desses locais de trabalho.
>> Confira os destaques da programação da Temporada da França no Brasil
A instalação é uma das obras que fazem parte da exposição O mundo segundo a IA, que está em cartaz em Paris até setembro e, em novembro, chega ao Brasil, ao Sesc Campinas, como parte da programação da Temporada França-Brasil. A exposição reúne obras de diversos artistas que questionam os impactos da inteligência artificial, sejam eles sociais, ambientais, cognitivos ou econômicos. A Agência Brasil visitou a exposição na França, a convite do Instituto Francês.
“Muitas vezes, falamos das tecnologias digitais como se fosse uma espécie de desmaterialização. Utilizamos metáforas como a nuvem, armazenamento na nuvem, a nuvem computacional, que, na verdade, não são nuvens, são centros de dados que consomem quantidades enormes de energia. O consumo de energia ligada à IA representa 3% do consumo de energia no mundo e é uma quantidade que vai aumentar de maneira fenomenal nos próximos anos”, diz o curador-chefe da exposição, Antonio Somaini.
Outra obra da exposição discute todo o trabalho necessário para que um simples sistema de IA, como a Alexa, da Amazon, chegue na casa das pessoas. O trabalho é de Kate Crawford (Austrália) e Vladan Joler (Sérvia) e se chama Anatomia de um sistema de IA: Um caso de estudo anatômico do Amazon Echo como um sistema de inteligência artificial feito de trabalho (2018).
Em um pedestal, está um aparelho Amazon Echo, em que os usuários interagem com a inteligência artificial Alexa. Atrás, um grande cartaz mostra do que é feito aparelho, desde as rochas e metais que precisaram ser extraídos da terra para que ele fosse construído até os trabalhadores necessárias para que isso fosse possível. A cartografia mostra ainda o que acontece após o uso, quando descartado, o que é feito com esse equipamento até que seja desintegrado completamente. Enquanto o aparelho ocupa apenas alguns centímetros quadrados, a cartografia se estende por toda uma parede de metros de altura e largura.
Faces do ImageNet (2021), de Trevor Paglen (Estados Unidos), convida os visitantes a se posicionarem diante de uma tela. Rapidamente, adjetivos e características, como esquisito, fumante, professor, começam a ser associados, apenas baseados na imagem captada. O telão usa os dados do ImageNet, criado em 2009 para treinar os sistemas de reconhecimento facial e de objetos. Esse sistema, por sua vez, é treinado por trabalhadores que tinham que associar palavras aleatórias a rostos de pessoas.
“Esses trabalhadores recebiam 50 imagens por minuto, recebiam uma lista de palavras e deviam rapidamente associar uma palavra e uma imagem. E, como utilizaram todos os substantivos da língua inglesa, também havia palavras que eram insultos”, explica Somaini. “Trevor Paglen, o artista autor da tela com Kate Crawford, analisou a composição do banco de dados e evidenciou todos os vieses sexistas, raciais e de gênero presentes ali.”
Essas características que podem parecer inocentes ou até mesmo engraçadas para quem visita a exposição podem servir para discriminar pessoas no mundo real e até mesmo para colocá-las em risco caso a tecnologia seja usada em uma guerra, por exemplo. 
A exposição propõe também uma reflexão sobre o futuro, que, para o artista Grégory Chatonsky (França), não é animador. Sua obra A quarta memória (2025) é uma instalação que simula um cenário distópico no qual a humanidade não mais existe e restam apenas as máquinas. Na parede, uma projeção que mostra, ao mesmo tempo, fotos e vídeos do próprio artista e imagens geradas por IA das vidas que poderiam ter sido vividas por ele, com base em um banco de imagens dos séculos 19 e 20.
“Ele fala que é uma obra póstuma. Depois que ele morrer, depois do final da humanidade, o que vai restar são essas imagens que vão reexplorar o nosso passado até o final da energia”, diz Somaini, que complementa: “Mas quem sabe se até lá terão inventado um sistema capaz de alimentar a energia e as máquinas não vão ter mais o problema do aquecimento?”.
As máquinas, então, se salvam e os seres humanos sobrevivem apenas nos bancos de dados. 
Ao contrário de Chatonsky, há quem acredite que ainda é possível tomar medidas para que a Terra não se torne um planeta impossível de ser habitado humanos. A exposição O Novo Anormal, que chega ao Brasil também como parte da Temporada França-Brasil, busca refletir sobre futuros possíveis e também mostrar que as mudanças devem ser feitas coletivamente para que tenham impacto. A exposição ocorrerá no Rio de Janeiro, Brasília e Belém, como uma adaptação da exposição Urgência Climática, em cartaz em Paris.
“Não estamos sujeitos ao futuro, nós o construímos”, defende o gerente de projetos de museu da Cidade da Ciência e da Indústria, onde a exposição está em cartaz em Paris, Adrien Stalter. 
O início da exposição é um aviso: “As atividades humanas geram CO2 (dióxido de carbono), e uma concentração importante de CO2 provoca um desajuste climático em escala planetária. Não se trata de uma opinião, há um consenso científico sobre o tema”, diz o texto introdutório da mostra, que segue com um convite para “elaborar um pensamento crítico, que nos tire do nosso estado de estupefação e nos impulsione a passar para a ação de forma coletiva, para poder seguir habitando a Terra”.
Uma das obras interativas convida os visitantes para uma refeição. Em uma tela, é possível escolher entrada, prato principal, sobremesa e até um cafezinho. No final, é gerada uma conta em pegadas de carbono, ou seja, o quanto do gás poluente apenas aquela refeição emitiu para atmosfera. Para cada alimento escolhido, há uma explicação de todas as etapas de produção, transporte e preparo até ele chegar ao prato.
Outra obra mostra em um globo suspenso o que significa o aumento de temperatura, que não ocorre de forma uniforme em todas as partes do planeta, e as consequências para as populações mais afetadas, como o calor extremo, o avanço no nível das águas do mar e o alagamento de cidades e comunidades litorâneas.
“A nossa missão não é dizer ao público você deve fazer isso, ou fazer aquilo. Nós mostramos a realidade dos números para que ele depois adapte seus hábitos de vida e de consumo. Não estamos aqui para impor aos visitantes outros comportamentos, mas mostramos que outros comportamentos são possíveis e talvez sejam melhores para o planeta”, diz Stalter.
Além das trocas culturais, a Temporada França-Brasil terá espaços de discussão. Um deles será o Fórum Nosso Futuro – França-Brasil, Diálogos com a África, que será aberto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo francês Emmanuel Macron. O fórum será em novembro, em Salvador. 
No Fórum, jovens e figuras importantes da África, Europa e Brasil se encontrarão para discutir a cidade inclusiva e sustentável do futuro: justiça territorial, inclusão social, igualdade de gênero, culturas afrodescendentes, entre outros.
Já o Fórum Juventude e Democracia reunirá 80 jovens franceses e brasileiros em workshops e palestras no SesiLab, em agosto, em Brasília, para debater questões globais como a luta contra a desinformação, a economia solidária e sustentável, a democracia cultural e a igualdade de gênero.
A Temporada 2025 foi acordada em 2023, pelos presidentes Lula e Macron. O objetivo é fortalecer a relação bilateral entre os dois países, principalmente por meio da cultura. No primeiro semestre deste ano, ocorreu a Temporada Brasil-França, ou seja, a programação brasileira em solo francês. Agora, no segundo semestre, é a vez da Temporada França-Brasil, elaborada pela França.
Os temas prioritários da Temporada são: a diversidade de sociedades e diálogo com África; democracia e Estado de direito; e clima e transição ecológica. A programação, que ocorre de agosto a dezembro, será distribuída entre 15 cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belém, Salvador, Recife, Fortaleza, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Campinas, São Luís, Teresina, João Pessoa e Macapá.
Entre os dias 17 e 24 de maio, a Agência Brasil esteve em Paris, a convite do Instituto Francês, vinculado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da França, responsável pela programação do segundo semestre, para conhecer um pouco da programação.
*A repórter viajou à Paris a convite do Instituto Francês.
 

source

Sair da versão mobile